Por que o Brasil não consegue erradicar o trabalho escravo?

Número de trabalhadores resgatados em condições análogas à escravidão dobrou em um ano, e só 4,2% dos denunciados pela prática foram condenados em 11 anos. Projetos de lei discutem expropriação de terras de empregadores.

Quase 2 mil trabalhadores foram resgatados em condições análogas à escravidão em 2021, segundo dados da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho. Além de um crescimento de 106% em relação a 2020, o número de resgates em 2021 foi o maior desde 2014.

A pena para quem submete alguém à escravidão moderna vai de dois a oito anos de reclusão e multa. O empregador também é incluído por dois anos em um documento público chamado de Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à escravidão, popularmente conhecido como Lista Suja.

Uma emenda constitucional de 2014 também prevê a expropriação de propriedade urbana e rural em que for constatada a exploração de trabalho em condições análogas à escravidão e a sua destinação à reforma agrária, no caso das rurais, ou aos programas de habitação popular, no caso das urbanas. Os trabalhadores resgatados seriam incluídos com prioridade em assentamentos ou nos programas habitacionais.

Apesar de prevista na Constituição Federal há quase dez anos, a procuradora do Trabalho Lys Sobral Cardoso, coordenadora nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do MPT, explica que a emenda constitucional nunca foi aplicada e chegou a ser julgada ilegal.

“O Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] chegou a usar a Lista Suja como documento oficial de que o empregador explorou o trabalho escravo para abrir um processo de expropriação das suas terra, mas a AGU [Advocacia Geral da União] entendeu que, por não ser regulamentada, a emenda era ilegal”, diz Cardoso.

A pauta sobre a expropriação de terras como punição a quem pratica trabalho escravo é anterior à emenda de 2014. Segundo a procuradora do MPT, a discussão vem desde a década de 1990, com a Lei da Reforma Agrária (Lei 8.629), mas nunca avançou por causa de pressões da bancada ruralista.

Nos anos 2000, a questão chegou a ser pautada no Congresso, mas foi usada como barganha para se alterar a definição de trabalho escravo prevista no Código Penal.

“Os projetos de lei que surgiram naquela época propunham a expropriação das terras mediante alteração do conceito de trabalho escravo, reduzindo o conceito para somente ‘trabalho forçado'”, explica Cardoso.

Elogiado fora do Brasil, o artigo 149 do Código Penal estabelece que o trabalho análogo ao de escravo ocorre em quatro modalidades, bastando a ocorrência de uma delas para que seja configurado o crime. São elas:

  • submeter o trabalhador a trabalhos forçados;
  • submeter o trabalhador a jornadas exaustivas de trabalho;
  • sujeitar o trabalhador a condições degradantes de trabalho (ex: falta de acesso à água potável ao longo da jornada de trabalho ou nos períodos de descanso; falta de instalações sanitárias ou a impossibilidade de sua utilização em condições higiênicas ou de preservação da privacidade, etc.);
  • restringir, por qualquer meio, a locomoção do trabalhador em razão de dívida contraída com empregador (ex: reter documentos ou objetos pessoais; isolamento geográfico ou o cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, etc.).

Um projeto de lei de 2019 (PL nº 1.678) e outro de 2021 (PL nº 1.678) propõem regulamentar a emenda da expropriação sem alterar o conceito de trabalho escravo. Ambos os projetos tramitam no Senado.

Porém, o presidente Jair Bolsonaro já declarou várias vezes ser contrário à expropriação das propriedades como forma de punir quem pratica trabalho análogo à escravidão.

Em 2019, Bolsonaro afirmou que a emenda de 2014 não seria aprovada em seu governo e justificou que o empregador “não quer maldade para o seu funcionário nem quer escravizá-lo”. “Isso não existe. Pode ser que exista na cabeça de uma minoria insignificante, aí tem que ser combatido”, disse.

Latifúndios, escravidão e reforma agrária

Dos 1.937 trabalhadores resgatados em 2021, 89% (1.727) estavam no trabalho rural, e 11% no urbano. 

Entre as cinco atividades econômicas com maior ocorrência de trabalho análogo ao de escravo, todas estão ligadas à produção agrícola e agropecuária, segundo dados do MPT.

Os dados refletem, de acordo com a coordenadora do programa Direitos Socioambientais da Conectas, Julia Neiva, a relação histórica entre trabalho escravo e latifúndios no país.

“O Brasil foi construído a partir de grandes latifúndios baseados em trabalho escravo, com grandes proprietários de terra escravagistas. E até hoje setores fundamentais da economia brasileira, como a produção do café e a agropecuária, dependem de mão de obra escrava”, diz Neiva.

Por isso, para a coordenadora, promover a reforma agrária para resgatados a partir de terras expropriadas de empregador que explorou o trabalho escravo “é reconhecer a divisão extremamente desigual de terras no Brasil”.  

Para a procuradora Cardoso, também “não é coincidência que todos os anos a maioria dos trabalhadores resgatados esteja no meio rural”.

“Esses trabalhadores não têm acesso nem ao mercado de trabalho formal e nem aos meios de produção, ou seja, a terra. Por isso, a reforma agrária voltada para essas pessoas teria o poder de erradicar o trabalho escravo no Brasil”, afirma Cardoso.

Reparação insuficiente

Desde 2002, o trabalhador resgatado tem direito a três parcelas do seguro-desemprego, independentemente do tempo de serviço prestado, pagas no momento do resgate, assim como o direito à reparação pelos danos morais e materiais sofridos durante a exploração.

“Mas, uma vez na Justiça, não temos como dizer quando as reparações serão pagas ao trabalhador, sem dizer que temos casos em que, depois de muito tempo de espera, a indenização foi de R$1 mil, R$1,5 mil. Isso nem de perto é suficiente para uma pessoa vulnerável seguir adiante, quanto mais para reparar o dano grave sofrido durante a escravidão”, explica Cardoso.

O Auditor-Fiscal do Trabalho Magno Riga, coordenador do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), conta que, por falta de suporte social e financeiro após os resgates, não é raro encontrar o mesmo trabalhador novamente em condição análoga ao de escravo em outros trabalhos.

“O objetivo dos grupos móveis de fiscalização é o de erradicar o trabalho escravo, mas, na verdade, o que fazemos é combatê-lo. Para erradicá-lo, precisamos de uma mudança estrutural econômica e socialmente profunda. Basta ver que somos um país rico, mas com muitos trabalhadores miseráveis”, diz Riga.

“Além de ser uma medida pedagógica a todos que submetem o trabalhador a essas condições, destinar as terras expropriadas à vítima de escravidão é relevante principalmente porque tem o poder de quebrar o ciclo do trabalho escravo no Brasil”, afirma o auditor-fiscal do trabalho.

Apenas 4,2% condenados

Os projetos de lei que tramitam atualmente no Senado preveem que a expropriação das propriedades onde houve trabalho escravo será aplicada somente após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Porém, para o auditor-fiscal Riga, esperar a sentença penal condenatória poderá contribuir para a impunidade na área.

“Basta olhar para os dados de quantas pessoas foram condenadas criminalmente em última instância por trabalho escravo nos últimos anos: pouco mais de 100. Se depender de condenação criminal, a expropriação será só mais uma exceção para os denunciados”, diz Riga.

Um estudo da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas (CTETP), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mostrou que dos 2.679 denunciados por trabalho escravo entre 2008 e 2019, apenas 112 (4,2%) foram condenados em última instância.

Ou seja, se a emenda constitucional fosse regulamentada como os projetos de lei preveem, a expropriação seria possível em apenas 4,2% dos denunciados em 11 anos.

“A cada 100 réus acusados de trabalho escravo, cerca de quatro são condenados definitivamente. É mais que impunidade, chega a ser perda de tempo você movimentar a Justiça para condenar quatro pessoas”, diz o coordenador da pesquisa, o juiz federal Carlos Haddad, professor da UFMG.

Mesmo se condenado criminalmente, Riga ainda lembra que o processo criminal é muito longo e correria o risco de prescrever.

“O processo criminal envolvendo trabalho escravo passa por julgamento na primeira e segunda instâncias, no STJ e no STF. Do jeito que estão os PLs, a ação de expropriação das terras teriam início somente após todo esse trâmite”, diz Riga.

Por isso, para o Auditor-Fiscal do Trabalho, apenas o processo administrativo, já usado como elemento para incluir o nome do empregador na Lista Suja, deveria bastar para iniciar a ação de expropriação das propriedades com mão de obra análoga à escrava.

“Se os autos de infração feitos pelos fiscais [em campo] forem considerados válidos e o processo administrativo considerar o empregador culpado, mesmo após garantir ampla defesa ao denunciado, isso deveria bastar para dar início a ação de expropriação daquelas terras”, defende Riga.

Lista Suja

Uma portaria interministerial instituiu a Lista Suja em 2004, um documento público com os nomes de empregadores que submeteram trabalhadores a condição análoga ao de escravo.

“A Lista Suja é uma iniciativa pioneira no mundo todo, que traz transparência sobre o tema para a sociedade, nos mostra quem são as empresas que utilizam trabalho escravo, mas ela ainda é frágil e precisa de uma lei para que não seja extinta”, diz Neiva.

Em 2016, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio, considerou que a Lista Suja se ampara na Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/11), uma vez que os autos de infração expedidos por auditores do trabalho são públicos.

Quem entra para a Lista Suja não tem acesso a créditos e financiamentos por dois anos, além de ser monitorado de perto pelos grupos de fiscalização móvel. Se constatada reincidência de trabalho escravo, o nome permanece no documento por mais dois anos.

“Não temos auditores nem estrutura para realizar o monitoramento nos locais incluídos na Lista Suja. Geralmente, quando fazemos, é porque recebemos informações novas, como uma nova denúncia de trabalho escravo no local”, diz o auditor-fiscal Riga.

Dados do MPT mostram que cerca de 45% do quadro de auditores fiscais do trabalho estão vagos por falta de novas contratações. Nos últimos dez anos, a área também sofreu corte de quase 70% dos recursos orçamentários. 

“O principal pilar do combate ao trabalho escravo é a fiscalização. Sem ela, não tem Lista Suja, não tem resgates, não se tem políticas para enfrentamento”, diz Neiva.

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